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A CASA QUE O VALDEMAR CONSTRUIU

20.02.2024 - 15.03.2024

artistas: James Concagh, Brian McGuire, Robert Chase Heishman
curadoria: Raul Araújo

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A CASA QUE O VALDEMAR CONSTRUIU

Raul Araújo

A relação entre construir e habitar tem sido objeto de estudo em diversas disciplinas,  como engenharia, arquitetura, urbanismo, antropologia, psicologia, filosofia e  psicanálise, entre outras. O tema da casa como espaço de criação e inspiração para  escritores, poetas, artistas e filósofos foi explorado em filmes, romances, ensaios  filosóficos e livros de arquitetura. Algumas dessas casas estão abertas à visitação, como  as de Jorge Amado, Pablo Neruda, Sigmund Freud, Martin Heidegger e Ludwig  Wittgenstein. 

O filósofo Martin Heidegger, que construiu sua própria casa, reflete sobre a relação entre  construir e habitar em um texto intitulado "Construir, Habitar e Pensar". No início do  texto, Heidegger indaga se as habitações modernas, planejadas, arejadas e bem  iluminadas seriam verdadeiramente habitações, se nelas ocorreria um habitar. O autor  resgata a etimologia da palavra alemã "buan", que significa construir e que em seu  sentido original significava habitar. Construir não é apenas um meio para uma habitação,  mas, em si mesmo, já é habitar. Heidegger destaca que a palavra "Nachbar" (vizinho)  tem sua raiz em "Nachgebur" ou "Nachgebauer," aquele que habita a proximidade,  indicando a ligação intrínseca entre construir e habitar. Construir, para Heidegger,  significa mais do que simplesmente criar estruturas físicas, envolve também proteger e  cultivar, assemelhando-se ao ato de cuidar do crescimento, como o cultivo de um campo  ou de uma planta. Nesse sentido, construir não é apenas produzir, mas edificar,  preservar, de-morar-se, morar e resguardar. 

O autor destaca que o habitar não ocorre porque construímos, mas, ao contrário,  construímos à medida que habitamos. A essência do habitar está no resguardo, em ser  e permanecer apaziguado, resguardado da ameaça. Habitar, para Heidegger, implica  permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardando cada coisa em  sua essência. Portanto, o ato de construir consiste em estabelecer e conectar espaços,  dando origem a lugares. É assim que, ao gerar elementos como lugares, o ato de  construir se aproxima mais essencialmente da natureza dos espaços e da origem  intrínseca do espaço do que toda a abordagem geométrica e matemática. Em resumo,  construir implica na edificação de lugares, sendo, portanto, um processo de estabelecer  e dar forma aos espaços. 

O Brasil foi formado através de uma longa história de migração, desterro e  desenraizamento, por pessoas que perderam o lar. A vinda de imigrantes portugueses  ricos, pessoas degredadas, cristãos-novos e ciganos que chegaram nestas terras a partir  do século XVI. O genocídio de indígenas e a expropriação de suas terras teve início com  a chegada dos portugueses e permanece até os dias de hoje. A captura, tráfico, escravização e segregação de povos africanos obteve várias roupagens ao longo do  tempo. No século XIX, migrantes europeus trazidos para trabalhar na lavoura de café,  em substituição à mão de obra escrava adiciona uma nova camada de migração  transatlântica na formação do povo brasileiro. A industrialização no século XX reconfigurou o território brasileiro, definindo novos lugares de escassez e abundância, o  que gerou fluxos migratórios em busca de lugares de sobrevivência. 

O deslocamento, a perda do lar e do lugar revelam outro sentido da palavra "habitar": a  perda dos hábitos. Hábito, de acordo com o dicionário Houaiss, tem origem no latim,  habĭtus,ūs, significa estado (do corpo), compleição, modo de ser, estado, natureza, postura; exterior, aspecto; modo de vestir, traje; disposição (dos ânimos). As palavras  hábito e habitar tem a mesma origem e compartilham campos semânticos próximos. Hábito significa maneira usual de ser, fazer, sentir, individual ou coletivamente; costume,  regra, modo. Maneira permanente ou frequente, regular ou esperada de agir, sentir, comportar-se; mania. Ação ou uso repetido que leva a um conhecimento ou prática. Portanto, os hábitos individuais e coletivos de se alimentar, casar-se, nomear os filhos,  enterrar os mortos são moradas para o ser humano, são hábitos que habitam os seres  humanos e os acolhem. Hábito também significa vestuário, indumentária, trajo. Indumentária de um religioso ou religiosa. Desenraizamento é o ato ou efeito de desenraizar(-se); desarraigamento saída de torrão natal, do local de origem perda de identidade, de afinidade, de sentimento de pertença; desnaturação, descaracterização.  

A perda do hábito, significa a perda do lar, da vizinhança, do parentesco, dos costumes,  das expressões idiomáticas, da linguagem, da vestimenta, dos rituais de celebração do  amor, da vida e da morte. Heidegger traça um paralelo entre "bauen," palavra do alemão  arcaico que abriga os significados de "construir" e "habitar," e "ser," como em "ich bin,  du bist," "eu sou," "tu és." Habitar e ser coincidem. 

A favela é um modo de habitar. Através da história do vocábulo "favela," pode-se  reconstituir a história da colonização, escravidão, Proclamação da República,  industrialização, globalização e neoliberalismo – desterro, resistência e enraizamento. "As favelas, anônimas ainda na ciência — ignoradas dos sábios, conhecidas demais pelos  tabaréus — talvez um futuro gênero cautério das leguminosas, têm, nas folhas de células  alongadas em vilosidades, notáveis aprestos de condensação, absorção e defesa. Por um  lado, a sua epiderme, ao resfriar-se à noite, muito abaixo da temperatura do ar, provoca,  a despeito da secura deste, breves precipitações de orvalho; por outro, a mão, que a  toca, toca uma chapa incandescente de ardência inaturável." Euclides da Cunha em "Os  Sertões," faz essa descrição da planta favela ou faveleiro (Cnidosculos phyeacanthus,  Martius). O livro trata da guerra de Canudos (1896-1897) e descreve a região do sertão  baiano onde Antônio Conselheiro havia criado uma nova nação. 

"Todas traçam, afinal, elíptica curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno  de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de Canudos — e daí para o norte, de  novo se dispersam e decaem até acabarem em chapadas altas à borda do S. Francisco."  Euclides descreve o Morro da Favela, que tinha posição estratégica, onde acamparam as  tropas federais enviadas para acabar com Canudos. Em Canudos, viviam 25 mil  sertanejos pobres que constituíam uma comunidade autossuficiente. Houve 4  expedições para derrubar Canudos. A última contou com 12.000 soldados vindos de  vários estados brasileiros, que montaram sua base no morro da Favela. Os soldados  eram, em sua maioria, homens pobres, ex-escravos que, para participar da guerra, o  governo ofereceu, além do soldo, a moradia. Ao voltar ao Rio de Janeiro, muitos tiveram o soldo cortado e nunca receberam moradia. Os veteranos da guerra passaram a ocupar  então o morro da Providência no Rio de Janeiro, dando o nome de Morro da Favela.

A  partir desse momento, a palavra "favela" passa a significar comunidade, habitação. A industrialização brasileira fez com que o Brasil deixasse de ser um país  predominantemente rural para se tornar um país urbano, com 80% da população  vivendo nas grandes cidades. Essa mudança rápida e sem planejamento urbano fez com  que as favelas se tornassem o principal modo de moradia para a população pobre e  migrante. As favelas difundiram-se no Rio de Janeiro e São Paulo, logo se espalharam por  todo território nacional. Hoje, são o tipo de moradia mais comum no mundo,  principalmente no Sul Global, como mostra Mike Davis em seu livro "Planeta Favela". A  moradia tipificada como subnormal, se torna a norma na economia neoliberal. 

Valdemar, órfão de pai, em um tempo que o homem detinha o pátrio poder e a mulher  era considerada relativamente incapaz, migra da Bahia para São Paulo, trabalha na  lavoura de café, casa-se com Valdeci e edifica sua casa na cidade de São Paulo. Primeiro,  um barraco de madeira, depois, com tijolos e blocos. Hoje, a casa tem 3 andares e deu  abrigo a 5 gerações, sua avó, mãe, filhos e netos. Valdemar edificou uma casa, mas para  isso, com sua família, vizinhos e amigos, reconstruiu modos de viver e conviver, de se  alimentar, celebrar a vida, o amor e a morte. Como nos lembra Heidegger, "Construir  não é, em sentido próprio, apenas meio para uma habitação. Construir já é, em si  mesmo, habitar." Nesse sentido, só constrói onde se habita. 

Valdemar parte da orfandade, do desterro, da privação da terra e moradia, para, em suas  palavras, conquistar seu “cantinho", construir sua habitação, casa, lar. Ter o seu cantinho  é poder construir uma nova forma de enraizamento. Assim, o pensar, o construir e o  habitar se encontram. Como afirma Heidegger, "o homem pensa o desenraizamento,  este deixa de ser uma miséria. Rigorosamente pensado e bem resguardado, o  desenraizamento é o único apelo que convoca os mortais para um habitar." 

James Concagh, artista irlandês radicado em São Paulo, é casado com Andrea, filha de  Valdemar, portanto, genro de Valdemar e pai de Kevin, seu neto. A Irlanda tem uma  história ainda mais longa de fome, pobreza, migração, expropriação da terra e  colonização. Assim como as pessoas negras escravizadas, os irlandeses foram objeto de  um processo sistemático de racialização e desumanização, como se pode constatar nesta  carta de Charles Kingsley para sua esposa: "Estou assombrado pelos chimpanzés  humanos que vi naquelas centenas de quilômetros desse país horrível... [Para] ver os  chimpanzés brancos, são terríveis; se eles fossem negros, não veríamos tanto, mas suas  peles, exceto quando bronzeadas pela exposição, são tão brancas quanto a nossa."  Descrições semelhantes podem ser encontradas tanto nos escritos de muitos vitorianos  eminentes quanto na cultura popular da Grã-Bretanha do século XIX em geral. Ainda  hoje, na cultura popular do mundo anglo-saxão, podemos encontrar descrições dos  irlandeses como bêbados, preguiçosos, arruaceiros, pessoas simples e alegres. 

Assim, James, também está em busca de seu "cantinho." Nascido em Dundalk, uma  cidade pequena, pobre, na fronteira com a Irlanda do Norte. Viveu com a família em  um bairro operário de Londres. Hoje vive em Pinheiros, bairro tradicional da burguesia  paulistana. Genro de Valdemar, frequenta o bairro do Jabaquara. Talvez seja essa série de deslocamentos que permite a James reconhecer o valor da obra de Valdemar. James  consegue escapar tanto do valor de troca quanto do valor de uso do imóvel, para  reconhecer a construção da casa como cultivo e edificação da vida. 

James define seu trabalho como construir superfícies por tentativa e erro para encontrar algo indispensável, utilizando materiais do cotidiano, como tecidos, madeiras, restos de obra, cimento, tinta látex, materiais doados ou abandonados que encontra na cidade.  Pode-se dizer que existe simetria entre a obra de Valdemar e as obras de James, assim  como em suas trajetórias. Para celebrar a construção de Valdemar, James convidou o  também irlandês, Brian Maguire e o americano Robert Chase Heishman. 

Brian compreende sua prática como um ato de solidariedade para com pessoas cuja voz  é censurada pelos poderosos. Essa preocupação o levou das margens do mundo anglo saxão às margens do mundo da arte, às prisões, às favelas, aos abrigos para mulheres,  às cidades engolidas pela guerra. O retrato é o gênero mais utilizado por Brian.  Historicamente, os retratos representavam os ricos e poderosos. A proposta de Brian é  subverter esta ordem e poder retratar aqueles que não são retratados, que não são  representados, que ficam fora da história. 

Robert Chase Heishman é filho de um pedreiro, trabalha através da criação de imagens  fotográficas, filmes e pinturas. Ele explora poeticamente imagens e seus contextos,  criando conexões através da narrativa. Além de seus trabalhos em estúdio, Robert  embarca regularmente em projetos de documentários e filmes que facilitam o  envolvimento com uma variedade de pessoas, comunidades e assuntos, levando-o a  diferentes lugares do mundo. Viagens e experiências são importantes para Robert  pessoalmente, artisticamente e civicamente, pois ajudam a ampliar sua compreensão da  beleza do mundo, bem como das injustiças que existem. Robert relata que conhecer as  práticas de edificação de Valdemar foi também uma forma de revisitar o trabalho de seu  pai, falecido em 2018, assim como uma maneira de elaborar seu luto. 

O projeto é um ato de reconhecimento e solidariedade, uma forma de construção,  habitação, articulação de espaços e formulação de ideias, de avizinhamentos e  reenraizamentos e autodeterminação. As pinturas, retratos e filmes compõem uma  alegoria que é o testemunho da dignidade e resistência de Valdemar, retrata nesse sentido a singularidade dessa história. A história de Valdemar é também a história de  James, Brian, Robert, brasileiros, irlandeses, americanos, migrantes, sem-teto, sem terra, sem-identidade, que estão no “trecho” relegados ao esquecimento e ao não-lugar,  mas que resistem em suas construções, habitações e pensamentos. Na poesia de Agepê: 

"Moro onde não mora ninguém 

Onde não passa ninguém 

Onde não vive ninguém 

É lá onde moro 

Que eu me sinto bem 

Moro onde moro"

 


 

 

Referências Bibliográficas: 

 

AGEPÊ. Moro Onde Não Mora Ninguém. São Paulo:Continental, 1975.Disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=Oplj90FQBSA 

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003 

Curtis, Liz. Nothing But The Same Old Story: The Roots of Anti-Irish Racism. Londres: Information on Ireland, 1984. 

HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. 1954. Disponível em:  https://filosofiaepatrimonio.files.wordpress.com/2017/03/martin-heidegger-construir habitar-pensar.pdf. Bauen, Wohnen, Denken. (1951) conferência pronunciada por  ocasião da "Segunda Reunião de Darmastad", publicada em Vortäge und Aufsätze, G.  Neske, Pfullingen, 1954 . Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. 

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed.  Objetiva, 2001. 

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