CRISTINA ATAÍDE
Nasceu em Viseu,1951. Vive e trabalha em Lisboa. Licenciada em Escultura pela ESBAL, Lisboa. Frequentou o Curso de Design de Equipamento da mesma faculdade.
Foi co-fundadora e diretora de produção de Escultura e Design da MadeIn, fabrica de transformação de mármore em Alenquer de 1987 a 1996 onde trabalhou com vários artistas nacionais e estrangeiros, nomeadamente Anish Kapoor, Michelangelo Pistolleto, Matt Mullican, etc…
Foi fundadora (2005) do coletivo artístico Laboratório que fez vários projetos expositivos em Portugal. Professora convidada da Universidade Lusofona de 1997 a 2012.
A sua obra, feita muitas vezes em viagem, transita entre a escultura e o desenho passando pela fotografia e vídeo. Expõe com regularidade desde 1984 e as grandes instalações e o site-specific, ocupam um importante lugar nas suas mostras. As preocupações com natureza e sua preservação é uma das constantes do seu trabalho e pesquisa. A estética relacional está cada vez mais presente nas suas intervenções publicas.
Bolseira da SEC, Projetos Especiais (1991), Fundação C. Gulbenkian (1994,95,98) e internacionalização (2015 e 2020), FLAD (1986, 88 e 97) e Fundação Oriente (1998 e 2003).
Recebeu vários prémios : 2011, Artemar,1º Prémio de escultura 2011, com Susana Anágua, Cascais; 2010, Menção honrosa, Bienal Internacional de Arte Plásticas e Design Industrial, Marinha Grande; 2009, Paisagen Blanca, projecto público para Blanca, Murcia, Espanha; 1997 e 1999, Prémio aquisição Unión Fenosa, La Coruña; 1996, Escultura selecionada para os “Recorridos de ARCO”, Madrid; 1995, Menção Honrosa de Escultura da 6ª Bienal das Caldas da Rainha; 1994, Distinção no Espaço Design 94, Exponor, Porto; 1993, Selo Design, Centro Português de Design; 1993, Prémio Design em Pedra, SK/Marbrito; 1987, Prémio Revelação na I Bienal de Sintra.
MÍDIA
Dar Corpo ao Vazio
Por favor, segue a linha vermelha
Respiração Boca a Boca
Filhos da Nação: Entrevista de Cristina Ataíde com jornalista Cláudia Almeida
https://www.rtp.pt/play/p6637/e455165/filhos-da-nacao
Paisagem com Interior
CV
Habilidades e realizações
REPRESENTAÇÕES EM COLEÇÕES PUBLICAS:
Centro de Arte Modena, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Coleção de Arte Contemporânea do Estado; Caixa Geral de Depósitos, Culturgest, Lisboa; MNAC, Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa; Fundação PLMJ, Lisboa; Fundação Victor e Maria da Graça Carmona e Costa, Lisboa; Museu Berardo, Lisboa; Novo Banco, Lisboa; Coleção António Cachola, Elvas; Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, Almada; Coleção de Arte Contemporânea Figueiredo Ribeiro, Abrantes; Museo de Arte Contemporáneo Unión Fenosa, A Coruña, Espanha; Centre d’Art Contemporain d’Essaouira, Maroc; Maison de l’Art Contemporain, Asilah, Maroc; MACS, Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba, São Paulo; Museu Afro Brasil, Coleção Emanoel Araujo, São Paulo; Biblioteca do Vaticano, Roma e Coleção de Livros de Artista e Edição Independente da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.
ESCULTURAS E PROJECTOS EM LOCAIS PÚBLICOS:
2021 Sem Título, 2020, Jardim da Água, Museu Coleção Berardo, CCB, Lisboa
2021 Conversadeiras, Poldra/ Van Size Public Art, Jardim Solar do Dão- Fontelo, Viseu
2015 Correia Garção, Parque dos Poetas, Oeiras
2014 Liberdade, Parque da Corredoura, Santana, Sesimbra
2013 Monumento a Bartolomeu da Costa, Castelo Branco
2012 Rotter, Parque de Escultura Contemporânea de Vila Nova da Barquinha
2011 Rubrik’s Cube com Susana Anágua, Parque Publico, Conselho de Cascais
2007 Horizonte, Gandarinha, Cascais
2007 Esculturas 1 e 2, Cepsa, Fundão
2005 Conjunto escultórico colaborativo, Fines, Andalucia | ES
2004 Homenagem a Ruy Belo, Biblioteca de Rio Maior
2004 Mater Natura, 2004, Cantanhede e “Urpunkt”, Caldas da Rainha.
2003 Sem título, Av. Marechal Carmona, Cascais.
2002 Passagem, Av. Infante D. Henrique, Cascais.
2000 Silêncio? Câmara Municipal de Santarém.
1997 Sem título, Fines |ES.
1997 Escultura Habitada, Biblioteca Municipal de Alenquer.
1996 Das Meer, das Boot, Dreieich | DE
1996 Painéis de azulejos e corredor das Consultas Externas no Hospital de Ponta Delgada, Açores.
1993 Caixa IV/ Box IV, Parque Central e “Caixa V/ Box V”, 1993, Parque Urbano, Amadora
1987 Sombras, 1987, Paços do Concelho de S. João da Madeira.
1984 Escultura na Falésia com José Pedro Croft, Cabo Espichel (desmontada)
EXPOSIÇÕES INDIVIDUAIS / SOLO EXHIBITIONS
2022
- Respiração Boca a Boca, MIEC, Museu Internacional de Escultura, Sto Tirso*
- Cristina Ataide, desenho e escultura, curadoria Lourenço Egreja, Abreu advogados, Lisboa.
2021
- Dar corpo ao vazio/ Embodying the void, com curadoria de Sergio Fazenda Rodrigues, Museu Coleção Berardo, CCB, Lisboa.*
- Cartografias Afetivas, curadoria Cassiana Der Haroutiounian, Andrea Rehder Arte Contemporânea, São Paulo (19 Fevereiro a 12 Março 2021).
- Todo y Sólo Luz/ All and only Light, comissária Mª Antónia de Castro, Centro de Arte Faro de Cabo Mayor, Santander | ES.*
- Who am I? Who are you? curadoria João Silvério, Galeria Diferença, Lisboa.
- A Memória da Água, curadoria João Pinharanda, Galeria do Parque, Vila Nova da Barquinha (23 de Outubro a 27 de Fevereiro de 2022).*
- Momentos Transitórios, Galeria Quattro, Leiria
- NO NAME/ Lista de 44 764 mortes documentadas de migrantes, feita pela “Fortress Police”, Finestra Sinistra, Nowhere, Lisboa.
- Malgre le Brouillard, curadoria Shannon Botelho, Anne+ Art Contemporain, Paris
2020
DAR CORPO AO VAZIO/Embodying the void (curadoria de Sergio Fazenda Rodrigues) Piso 0 do Museu Coleção Berardo, CCB, Lisboa*
2019
O CAMINHO DAS MÃOS, azulejos de Cristina Ataide, Galeria Ratton, Lisboa
Projeto Rizoma, Open Day, Andrea Rehder Arte Contemporânea, São Paulo
2018
ATRAVÉS DA PAISAGEM (curadoria Douglas de Freitas), Andrea Rehder Arte Contemporânea, São Paulo
UNA ARRUGA EN EL AIRE, Fundación Tres Culturas, Sevilha;
GEOGRAFIAS ERRANTES (vistas) de dentro para fora, com Shirley Paes Leme (curadoria de Fátima Lambert) Palácio das Artes, Porto.
ÁGUA VIDA, site-specific em Valdelarte, Arte e Natureza, ES
OBSERVADORES DO CÉU/ Sky Gazers, Ciclo “Ações Estéticas Quase Instantâneas” #24 (curadoria de Fátima lambert), Museu Soares dos Reis, Porto
POR FAVOR, SEGUE A LINHA VERMELHA/ Follow the Red Line, please, Plodra, Public Sculpture Project, Viseu*
2017
VOLTAR DE VEZ EM QUANDO / Returning now and then, Travessa da Ermida, Lisboa (curadora Ana Cristina Cachola).*
DEL AIRE O UNA EMANACIÓN, ALCultura, Algeciras | ES
SKIN-AFAIR-Lisboa, nas comemorações dos 100 anos do ISA, Tapada da Ajuda, Lisboa
2016
UNDER ALL OF THIS, Galeria Belo-Galsterer, Lisboa*
ET PUIS LE CHEMIN com Isabelle Dubrul, Tour Bidouane, Saint Malo| FR
ATÉ AO ABRAÇO, Galeria Virgílio, São Paulo | BR
NA PALMA DA MÃO, Galeria Ybakatu, Curitiba | BR
POLARIDADES SOLÚVEIS com Renata Cruz, Museu Nacional de História Natural e Ciência, Sala de Química Analítica, Lisboa.
2015
SER LINHA SER/ A Line being a Line, com curadoria de João Pinharanda, Fundação Carmona e Costa, Lisboa*
TIME AND WEATHER in The Shed Space Gallery, Brooklyn, New York
PERCURSOS EM DERIVA (curadoria Priscila Arantes), Paço das Artes, São Paulo |BR
2014
ESPERANDO QUE NIEVE, Centro de Arte de Alcobendas, Madrid | ES
POSSIBILIDADES DE PASSAGEM, Galeria Quattro, Leiria*
2013
DESLOCAMENTO(S), com Isaque Pinheiro, Centro Cultural Sistema Fiep, Curitiba, BR.
((ARMAZÉM 145, com Thierry Simões, Laboratórios Artísticos, uma produção Tempos de Vista, Museu da Carris, Lisboa
(IM)PERMANÊNCIAS III, Grémio de Letras & Artes, Tinalhas | PT
A PARTICULAR PLACE, Art Institute Gallery, New York |expo virtual|
2012
ITINERÁRIO DA MENTE PARA A LUZ (d’aprés São Boaventura), com José Rufino, (curadoria Fátima Lambert), Mosteiro de S. Bento, São Paulo, Brasil
LA MONTAÑA MÁGICA/ DER ZAUBERBERG, Galeria Magda Bellotti, Madrid
LAR, DOCE LAR…/ Home Swith Home…Instalação/ residência, Carpe Diem, Arte e Pesquisa, Lisboa
2011
FRAMES E MARES (curadoria Carlos Melo), SESC, Caruaru, Pernambuco | BR
INTERVENÇÃO ARTISTICA, no Hotel ONYRIA MARINHA EDITION HOTEL & THALASSO, Quinta da Marinha, Cascais.
2010
SUSPENDER O AR, Casa da Cerca, Almada*
LUGARES DE DERIVA, Museu da Horta, Faial e Museu dos Baleeiros, Lajes do Pico
RECADOS (instalação), Av. Marginal, Lajes do Pico
2009
WALK WITH ME, Galeria Magda Bellotti, Madrid
INTERVALOS DO REAL, Galeria nova Ogiva, Óbidos *
LUGARES DE DERIVA (curadoria Paulo Reis), Galeria Fonseca Macedo, Ponta Delgada
(IM)PERMANÊNCIAS II, instalação integrada na Exposição Corpo, Densidade e Limites [curador João Pinharanda]., Museu de Arte Contemporânea de Elvas, Paiol
TODAS AS MONTANHAS, com Alexandra Oliveira, Galeria Gomes Alves, Guimarães
“…são bons ESTES LUGARES DE CINZA para a solidão dos pássaros” (curadoria Fátima Lambert), Quase Galeria, Espaço T, Porto
2008
MANUAL DE INSTRUÇÕES, Galeria Carlos Carvalho – Zoom, Lisboa
TODAS AS MONTANHAS DO MUNDO, Giefarte, Lisboa
OLHARDIZERSENTIR, Galeria Quattro, Leiria
INWARD, Centro Cultural de S. Lourenço, Almancil
2007
LABORATÓRIO ÁRVORE II/ Lab Tree II, Forte de S. João Batista, Foz do Porto
(RE)VER, Centro Cultural de Alcains
ESCULTURA E DESENHO, Centro Cultural de Macedo de Cavaleiros
2006
PÓ DO MEU CORPO, Galeria Gomes Alves, Guimarães
FEEL IT, Galeria Évora -Arte, Évora
2005
DEPOIS TB FLORESCEM, Pavilhão Branco do Museu da Cidade, Lisboa*
FICUS, Giefarte, Lisboa.
DURANTE O RIO, Chiado 8 Arte Contemporânea, Lisboa e Galeria Fernando Santos, Porto*
2003
(IM)PERMANÊNCIAS, Galeria LUÍS SERPA Projectos, Lisboa
INSIDE ME, Museu da Imagem, Braga
37º N; 25º W, Galeria Fonseca Macedo, Ponta Delgada [Conferencia de João Lima Pinharanda|*.
2002
COM O SUOR DO ROSTO, Museu Francisco Tavares Proença Júnior, Castelo Branco*
2001
ANATOMIA DO SENTIMENTO, ou como um atractor estranho se pode transformar num caso de paixão/ Anatomy of Feeling or, how a strange attracto may become a case of passion, com Paulo Cunha e Silva, Galeria André Viana, Porto *
SERES FRACTAIS, G
aleria Gomes Alves, Guimarães
2000
MEMÓRIA, com Graça Pereira Coutinho (curadoria Isabel Carlos), Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, Almada *
TRANSMUTAÇÕES, Galeria de Arte G, Viseu *
TRANSMUTAÇÕES II, Galeria Giefarte, Lisboa
ORGANISMOS FRÁGEIS, Galeria Gomes Alves, Guimarães
ORGANISMOS, Giefarte, Lisboa
1997
VENTRES EMERSOS, Galeria Trem e Arco, Faro *
REENCONTROS, Casa Museu de Almeida Moreira, Viseu
1996
GARDE-FOU, Galeria Graça Fonseca, Lisboa
DESTROÇOS, Galeria Diferença (loja), Lisboa
... DOS CORPOS AUSENTES, Galeria da Universidade, Braga *
1995
ALGUNS PECADOS E UMA VIRTUDE, Museu do Mosteiro de S. Martinho de Tibães, Braga *
VERMELHO, Galeria Gomes Alves, Guimarães
1994
OPOSIÇÕES, Galeria Graça Fonseca, Lisboa *
OPOSIÇÕES II, Galeria Fernando Santos, Porto
1993
CONTRASTES, Galeria Quattro, Leiria
MADEIN PORTUGAL, Sidi, Barcelona |ES
1992
MECANOPLASTIAS, Galeria Fluxus, Porto *
1988
PENUMBRAS, Galeria Diferença, Lisboa
ESCULTURAS, Fórum de Viseu.
1984
PEDRAS EM CASTELO, Museu Tavares Proença Júnior, Castelo Branco. *
* Exposições com catálogo
ATRAVÉS DA PAISAGEM
Douglas de Freitas
"Aquilo que é dado a ver, a paisagem pintada, é a concretização do elo entre os diferentes elementos e valores de uma cultura, ligação essa que oferece uma disposição, uma ordenação e, por fim, uma "ordem" para a percepção do mundo."
Na História da Arte, as formas de se relacionar diretamente com a natureza, foi fruto de intenso desejo dos artistas em diferentes momentos. A Escola de Barbizon, por exemplo, foi um movimento ocorrido entre os anos 1830 e 1870, onde um grupo de artistas migrou de Paris para Barbizon, mais especificamente pelos arredores do bosque de Fontainebleau, entre eles Jean-François Millet, Jean-Baptiste Camille Corot e Théodore Rousseau. Essa migração foi uma tomada de posição ao sistema de representação vigente na época, uma busca por novas possibilidades. Já no fim da década de 1960, nos Estados Unidos, artistas como Robert Smithson, Nancy Holt, Richard Long e Walter de Maria, em uma recusa ao espaço tradicional do cubo branco e também ao sistema estabelecido de arte, iniciaram experiências artísticas em campo aberto, direto na paisagem. Era o surgimento da Land Art. Esses dois exemplos, de alguma forma, romperam e abriram novos paradigmas, sobretudo nas formas de representação da paisagem e da natureza na arte dos dias de hoje.
Uma possível representação da natureza que vá além da mimeses, que se lance nela para discuti-la de forma conceitual, banhada por um movimento de migração através diferentes paisagens, é o que constitui a prática artística de Cristina Ataíde. Em seus trabalhos situações “da” ou “na” natureza são tomadas como ponto de partida para desenhos, esculturas e instalações que, não apenas registram territórios percorridos por um artista viajante, mas carregam em si marcas e elementos extraídos deles, através de ações performáticas de desenho, ou de matérias e materiais recolhidos desses lugares.
Dessas viagens surgiram trabalhos como a série “Todas as Montanhas do Mundo”, desenhos de grandes dimensões recebem a lista das montanhas mais altas do mundo impresso no fundo dos desenhos. Ou como “Deriva”, uma serie de montanhas fundidas em bronze recebem a leveza de uma linha vermelha, que as interliga, criando um novo território. São inventários poéticos dessas paisagens.
Em “Eclipse”, a artista faz uso de papéis que ganhou no Laboratório Astronômico de Lisboa, para criar um livro-caixa com eclipses, planetas e universos possíveis, cheios de densidade e leveza. Deriva #4 recebe pedras vulcânicas coletadas pela artista para criar uma nova paisagem possível. Fragmentos de lugares se tornam universos ou paisagens eles mesmos.
Cristina busca em seus trabalhos sintetizar suas experiências de deslocamentos, de contato com outras culturas, fluxos e personagens desses lugares. O conjunto de trabalhos aqui reunidos apresenta parte de suas viagens por diferentes países, e por diversas regiões do Brasil, paisagens extremamente distintas. No entanto, cada trabalho se constitui de cada uma delas, e de todas elas ao mesmo tempo. Não são simples registros, habitam umas nas outras, se convertem em paisagem da artista, território novo a ser explorado, uma paisagem construída aos pedaços.
CARTOGRAFIAS AFETIVAS
Cassiana Der Haroutiounian
Herberto Helder – o barulho do mar e do vento
O barulho do mar e do vento.
A montanha, a ideia da montanha impraticável.
E depois a terra arenosa por ali fora. E a solidão.
E sentir sobretudo que já não pode haver medo.
Fecho as portas da casa, a porta de saída e as portas dos quartos entre si.
E fico no quarto sem soalho e deito-me no chão.
Ouço o mar e o vento à frente e atrás da montanha solitária e poderosa. Depois encosto a cara à terra profundíssima para escutar o seu húmido sussurro atravessando-a toda e passando por mim.
E então poderei morrer.
Uma lista de tudo o que você não quer esquecer na vida… É assim que a artista portuguesa Cristina Ataíde, mantém sua memória viva, como um diário que frequenta, vez ou outra quando sente saudade ou quando precisa reativar uma lembrança da mente. Foi o jeito que ela encontrou para estar perto de tudo, em um só lugar, experienciando a poesia e a vida.
“A memória nos leva onde quisermos, e deixa o mundo menor. E isso é muito bonito.” afirma a artista. As listas intermitentes, infinitas, passam pelas mortes desnecessárias, sobre o coração, dos desejos… Palavra escrita como uma forma de se apropriar e se lembrar daquilo que quer ou precisa, tornando-se parte de nós e desse mapa que nos guia. A palavra escrita se torna verdade e nítida, deixando tudo mais presente.
Viajar com os acessos das nossas memórias, do nosso mapa imaginário, que cada ser humano constrói dentro de si, com crenças, valores, desejos e sonhos. É por meio desse mapa que se guia, para trilhar e lutar pela sua própria vida. “É imaginário, mas te pertence.”
“Todas as montanhas do mundo” é uma de suas listas, imensas, e geralmente feitas em viagens, indicadas nos seus desenhos com as referências geográficas e de altitude. No papel, as montanhas mudam de cor conforme a experiência que a artista vive com cada uma delas – percorrer, alcançar o topo ou apenas como um desejo. “Um pouco para perceber a imensidão do mundo, vendo o que eu já fiz e o que posso voltar a fazer. Como um mapear onde fui e onde pretendo ir.” Assim como todas as coisas (ideias e seres) existem e transformam-se, são apreendidas e compreendidas, no movimento constante do mundo, na impermanência do ser e da memória, ela se reinventa em cada deslocamento, em cada trajetória, em cada percurso.
Diz um dicionário de símbolos na internet: “A montanha encerra o simbolismo da transcendência, é o encontro entre o céu e a terra, considerada a morada dos deuses e objetivo da ascensão do homem. Alta, vertical, elevada, quase atingindo o céu; vista de cima é como se fosse o centro do mundo e vista de baixo é tida como o eixo do mundo. Pode ainda ser considerada a escada, a inclinação a se escalar, o caminho ascendente objetivado por cada ser. Observamos que várias culturas, países ou cidades possuem uma montanha sagrada, normalmente onde atribuem ser a morada de deuses e divindades. Fato observado desde a mitologia grega até a Bíblia cristã.”
Explorar o mistério que envolve a presença das montanhas na vida humana, ao longo do tempo e dos lugares, é tarefa desafiadora em vários aspectos. Seu encanto e imponência desafiam as limitações físicas do homem, mas instigam sobretudo sua razão e sensibilidade. A montanha está sempre acontecendo e faz com que sempre pensemos no lado de lá. Parece sempre existir um mundo inteiro ao cruzar uma montanha. Fronteiras porosas, fronteiras imaginárias, ou talvez apenas o amanhã.
Para Ataíde, percorrer o caminho até ou ao redor de uma montanha exige a superação do eu, a solidão, o confronto com o mundo, numa mímese pulsante com a natureza e seus acontecimentos. Perceber o eu e o outro, se misturando ao vento. Estar no mundo através do alto de uma montanha, com a vista do horizonte é perceber pequenez e a imensidão do que nos rodeia. Ou será a nossa?
Cristina Ataíde é e está no mundo, em sua exaltação, com as ambiguidades todas que isso carrega. Ela se faz presente, em contato consigo mesma e na busca do contato com o outro, numa relação do ser como um grão de areia na imensidão do universo.
Com desenhos, fotografias, esculturas e instalações, suas obras tem a predominância da cor vermelha, pela potência de dualidades de significados e sentimentos que esse pigmento primário carrega. O amor e o ódio, morte e vida, luminoso, o masculino, mais denso, o feminino; e a compensação do verde e nós precisamos de opostos complementares para seguir nessa jornada da vida, me diz ela.
Suas montanhas vermelhas esparramadas pelas paredes também se complementam com as esculturas das montanhas em mármore. Diferentes relevos montanhosos, como uma casa, com uma mini portinha que te convida e depositar os seus mais profundos devaneios e sentimentos são uma homenagem às casas de Louise Bourgeois. Com o interior dessas montanhas-casas vazio, propõe uma reflexão sobre o recolhimento de nós mesmos. A redoma montanhosa como um abrigo do ser.
Cristina escuta os sussurros das paisagens em suas obras. As questões geográficas (no mais amplo sentido da palavra – para dar sentido a si e as coisas) e as transformações em camadas que todas elas vivenciaram e se transformaram, no âmbito social, cultural e político. Com um processo de frottage – decalque – ela marca a pele do mundo em sua obra, com grafite e uma folha de papel, mapeando um lugar e podendo trazer o lugar com ela, e tudo o que está por trás do desenho, as moléculas desse pequeno mundo que ela escolheu registrar. Deu início a essa técnica pelos caminhos de Santiago de Compostela, e seguiu por caminhos pelo mundo No Brasil, fez o decalque do chão ao redor do mosteiro de São Bento, como uma forma de mapear essas vidas que ali habitam e depois mapeando o horizonte de SP, que para ela é uma montanha de cimento, de pessoas e de casas.
Durante toda a quarentena, ela segue com suas listagens, nessa conexão com a natureza indo e voltando de seu ateliê, rodeado de verde, perto de Lisboa, refletindo sobre toda a impermanência do mundo e sobre o ritmo desse novo espaço-tempo. Apropria-se do movimento-pausa impermanente como um estímulo para o fluir, ajustar, modificar, ativando um estado de alerta e de consciência, já que não sabemos qual será o dia de amanhã. “É preciso estar de olhos bem abertos, sabendo olhar pra dentro e ao redor e acreditando que nós sempre temos a última palavra.”, diz a artista.
RESPIRAÇÃO SÍNCRONA
Sara Antónia
Numa das vezes que encontrei Cristina Ataíde, a caminho do seu atelier, a artista comentou que andava a ler a biografia de Yves Klein, um artista que trabalhou a cor, patenteou cores, teve experiências psicadélicas com a cor, desenvolveu modos próprios de a fixar. Foi esta uma das razões que levou Cristina Ataíde a ler a sua biografia. A artista também se associa a uma cor – o vermelho, nas suas diversas gamas e estados físicos – e continua a assumir que uma das maiores dificuldades é a fixação do pigmento, em pó, sobre o suporte de papel, sem recurso a um medium líquido que lhe daria aspeto de tinta.
Perguntei por que razão é tão importante manter o pigmento sólido. Responde que a luz não é refletida da mesma maneira nos diversos estados corpóreos, sendo mais intensa quando o pigmento se apresenta em pó. No estado líquido, a luz é absorvida ou refletida a partir de uma superfície plana e não de um volume de grãos, em todas as direções. Acresce que a cor em pigmento, isto é, grãos de matéria, torna-se um atractor mais intenso pela sua componente táctil.
Desta revelação depreende-se que, tanto como a força da cor, é importante para a artista a sua componente táctil ou háptica. O termo háptico, estudado e debatido pelo filósofo e psicólogo americano James J. Gibson, significa “sensível ao tato”, possibilidade de “tocar, suster ou agarrar” alguma coisa, mesmo que através de uma perceção muito ténue fornecida por outros sentidos que não o tato. O sistema háptico, segundo o autor, é o aparelho através do qual o ser humano obtém informação sobre o ambiente circundante e sobre o seu próprio corpo. Este aparato recobre todo o corpo, inclui órgãos e superfícies, dispõe ainda de extremidades e extensões, umas com aptidão recetiva e outras com capacidade de ação e performatividade tais como os membros do corpo humano. Ora, neste processo em que o corpo funciona como uma lente para o mundo dá-se uma convergência entre os sentidos. Conjugando-se simultaneamente, uns sentidos colmatam as limitações dos outros, formando um “sistema-multissensorial”, na base da perceção artística em geral e da obra de Cristina Ataíde em particular. É aliás a reciprocidade entre a artista e o meio circundante que justifica o título atribuído à exposição, Cristina Ataíde: Respiração boca a boca – procurando este título traduzir a permeabilidade entre o corpo da artista e o ambiente circundante, a respiração síncrona entre ambos, e até a dissolução de um no outro.
A cor é-lhe fundamental. A sua saturação e temperatura atraem e repelem o corpo como outra matéria escultórica. Aos simbolismos associados à cor ir-se-á mais adiante. Para já, interessa olhar para a exposição no Museu de Escultura Contemporânea de Santo Tirso, na qual a artista reúne peças de períodos distintos da sua produção, antigas e recentes, algumas especificamente feitas ou readaptadas ao espaço.
Este cruzamento entre peças antigas e novas, permite perceber a continuidade e, simultaneamente, os desenvolvimentos operados na obra com a passagem do tempo. O tempo é um dos seus aliados de ação e esculpe tanto quanto a própria artista, que colhe, nas diversas geografias por onde passa, elementos matéricos moldados pela erosão. São disso exemplo: pedras de praia, fosseis, nós e cascas de árvore, sementes, galhos, areias, terras, folhas… dos mais leves aos mais pesados, frágeis e resistentes, que depois são transformados em peças ou passam a integrá-las.
À entrada do museu, ainda do lado de fora, encontra-se uma peça de ferro e pedra, da série “Observadores do Céu”, de 2016, que convida o espectador a colocar-se por baixo dos seus três pés e observar o espaço atmosférico a partir de um anel de pedra que funciona como um óculo. A peça tem um gémeo análogo no interior do museu, “Geografias Errantes”, de 2018, e na parede em frente um disco de chumbo, sulcado, “Polaridade Solúveis”, de 2016, que parece espelhar o céu, pese embora as suas marcas e decalques provenham do chão.
Estas peças anunciam que a obra de Cristina Ataíde, por um lado, se ancora no chão e, por outro, se procura soltar dele, como se à escultura fosse permitido perder o peso, negando os seus princípios endógenos. Na dialética entre as forças da gravidade e a sua superação parece radicar a obra da artista, que na escultura e em desenho aponta, não para o que aprisiona mas, para qualquer coisa que se evade do material.
Disso são evidência as peças apresentadas nas várias salas do Museu de Escultura Contemporânea de Santo Tirso. No primeiro piso, mostram-se um conjunto de seis esculturas em pedra Azul Cascais, de 1991 e 1992, que sem denunciar os objetos que representam remetem para ferramentas de trabalho, encaixes, anilhas e outros aparelhos de maquinaria. As esculturas, que rondam a altura dos nossos joelhos, pousam sobre o chão ou assentam em bases a alguns centímetros do nível térreo, podendo ser vistas de cima, gerando forças concêntricas em seu redor. A este propósito, a artista diz que trabalhar diferentes pedras exige um esforço físico distinto e que se, por exemplo, o calcário dúctil confere uma determinada energia, o granito, por seu turno, com quartzo na sua constituição, sendo rígido, pode ser extenuante para o escultor. Deste modo, as diversas pedras, assim como cada material em particular, são detentores de diferentes plasticidades e temperaturas, resistência e permeabilidade, por consequência afetando a experiência do artista (no fazer) e do espectador (na receção). Neste âmbito, deve considerar-se que o artista, além do «fazer», é um espectador da sua própria obra: emite e recebe, afeta e deixa-se afetar. Isso acontece porque cada obra é um corpo, que afeta o corpo com que se defronta, por vezes atraindo-o, outras afastando-o, fazendo-o circular em seu redor. Há, portanto, um espaço permeável entre ambos, que o artista Bruce Nauman designou de “espaço de osmose”, ou seja, de comunicação entre dois corpos, mesmo que entre eles não exista o recurso à palavra, como é o caso do artista no trabalho com os materiais. Nesta sequência, pode dizer-se que a obra instaura uma relação de “osmose”, ou transferência, entre o espaço/corpo do artista e do espectador ou, se se quiser, entre artista e espectador por intermédio da obra. Isso pressupõe situar o outro como recetor das obras, ou presumir que há alguém, mesmo em abstrato, para as receber – condição fundadora da arte.
Junto a estas esculturas de pedra cinzenta com orifícios e oclusões, a artista mostra um conjunto de desenhos da série “Fonte”, realizados entre 1998 e 1999, de tonalidade branca, com saliências e orifícios alusivos a vulvas, moldados sobre a superfície da folha com massa darwi. De caracter explicitamente erótico, fazem um contraponto às esculturas com formas regulares: círculos, quadrados, ovais. Como se verá, a alusão ao útero e ao recetáculo, enquanto lugar da germinação, patente nesses desenhos realizados há mais de vinte anos, não mais deixará de se fazer.
A segunda sala é preenchida por esculturas, realizadas entre 1994 e 2021, resultantes da apropriação de moldes e dispositivos industriais, mecânicos, com uma parte pintada de vermelho e outras faces cobertas com grafite pela artista. Quase invariavelmente as superfícies vermelhas são interiores, como se expusessem a carnalidade das faces internas, protegidas por massas metalizadas, espessas, compactas, no exterior. Remetendo a pesados engenhos mecânicos, estas esculturas exercem um apelo ao corpo, que por atração a elas se parece poder acoplar, estropiar, sodomizar. São máquinas do corpo, para o corpo, ou mesmo partes dele, rótulas, membranas, tampões e extensões onde o corpo se vê sem nelas estar.
Desta maneira, arrisca-se dizer que a obra de Cristina Ataíde é um hino ao corpo, às suas carnalidades e temperaturas, mesmo não o representando de modo explícito ou figurativo. É o corpo e o seu erotismo, a fugacidade decorrente de os aprender e de os largar, que está no cerne da representação desta obra. A efemeridade e impotência inerente ao ato de representação evidencia-se também nos trabalhos da sala do piso inferior onde a artista dispõe três esculturas-recetáculo, de 1988, de nome “Caixa II, VII e VIII”, contendo cada uma diferentes matérias em grão: areia granítica, Urucum e areia do deserto do Sahara. Estes três recetáculos em pedra escura, que são também jazigos de pó, contrastam com uma laje, em chapa de ferro, presa à parede da galeria em posição inclinada, e que apresenta uma fissura vertical que a luz atravessa. A sala no seu conjunto alude à matéria em estado bruto, ou essencial, ou talvez, ao que por entre ela se escapa. Este aspeto é ainda evidenciado pela luz quente que se evade por debaixo dos três jazigos de pó, resultado da reflexão provocada pela superfície inferior das caixas, pintada de vermelho pela artista.
A sala é complementada por dois conjuntos de desenhos que reforçam a ideia de diluição. Nos desenhos maiores, “Depois do Rio”, de 2021 e 2022, o pigmento em pó é espalhado pelo vento sobre a folha na posição horizontal. Segundo a artista, só uma parte do pigmento aí deitado permanece preso à folha por efeito do fixador. O resto vai-se erodindo, desprendendo, descolando do suporte e naturalmente perdendo no ambiente circundante até por efeito do manuseamento, das mãos. A artista não luta contra isso, como não luta em geral contra as forças telúricas e naturais. Pelo contrário, parece desejar fundir-se nelas e disso extrair potência para o seu trabalho. Repare-se que, em algumas situações, a artista deixa o pigmento soltar-se das peças e inclusive acumular-se no chão da galeria.
No segundo grupo de desenhos apresentados nessa sala, “Time and Weather”, realizados entre 2013 e 2019, a artista deixa a água trabalhar. Um pequeno cubo de aguarela sólido é aglutinado à folha e diluído à medida que a água nele penetra, derramando e espalhando a sua cor pelo suporte. Em alguns desenhos da série, o cubo de aguarela é depois coberto por um quadrado de grafite, ficando à mostra apenas as bordas e os escorridos de cor. Através do título de termos anglo-saxónicos “Time and Weather”, a artista explora também a ambiguidade semântica do vocábulo português «tempo» usado para referir o estado climatérico e a dimensão cronológica. Desta forma, parece apontar mais uma vez para a fusão entre o domínio atmosférico e a passagem temporal, fazendo de ambos um processo síncrono.
Predomina a cor, nas esculturas e no desenho, ou talvez as temperaturas quentes da terra, da madeira, das sementes, do fogo, do carvão. Todavia, podendo apropriar-se de matérias cruas, naturais, Cristina Ataíde nunca as usa sem manuseamento, feitura ou transformação. Daí poder-se dizer que para a artista é fundamental o conhecimento das matérias, com e pelas suas mãos. Parece haver necessidade de uma simbiose entre corpo da artista e matéria, respiração boca a boca, fazendo de ambos um só.
A atravessar a sala, estabelecendo a ligação para a seguinte, uma frase de letras vermelhas, em vinil, colada no chão, relembra que o ser humano é uma condição em permanente devir: «ser alternativa, ser carência, ser partida, ser prova, ser fantasma, ser…».
A ideia de devir, proveniente do étimo latino devenire, chegar a tornar-se, começar a ser o que não era antes, corresponde em inglês à ideia de becoming, pensada pelo filósofo americano David Michael Levin e pelo fenomenologista britânico Paul Rodaway como resultado de uma interação entre o ser humano e o meio circundante, resultando numa transformação dos dois. Esse processo é contínuo como a vida, defendem os autores. Significa que o sujeito não é sempre o mesmo, permanentemente igual, definitivo. Ao contrário, transforma-se, no contacto e no confronto com o exterior, relativamente às culturas e territórios a que está exposto, sendo cada vez mais difícil viver à luz do paradigma moderno, crente na transparência do conhecimento, na verdade e na objetividade da realidade.
Em Modernity and the Hegemony of Vision, de 1993, e em The Opening of Vision: Nihilism and the Postmodern Situation, de 1988, David Levin aborda a ideia de becoming a partir do problema da visão – aspeto que merece atenção no que diz respeito à obra de Cristina Ataíde, a qual aponta reiteradamente para o que se evade (o não-visível) da obra e do material.
Naqueles livros, o autor defende que a construção do posicionamento do sujeito, o seu devir, não se sustenta apenas no sentido da visão, a que o mundo moderno tem atribuído preponderância e supremacia sobre os outros sentidos percetivos. Para ele, o desconforto em relação ao paradigma racionalista, que atribui à visão o poder totalitário de localizar e estratificar os objetos no espaço, cristalizando-os, recai numa estreita conceção de pensamento (racionalista e objetivista) que opõe objeto e sujeito. Este princípio, desconstrói-o a artista continuamente através da sua obra. Para ela, objeto e sujeito respiram a um só tempo e espaço, boca a boca.
Ao longo do estudo, aquele autor dá a entender que quando a objetividade triunfa e se torna instrumental, e todas as esferas da vida são regulamentadas racionalmente, deixa de haver lugar para a subjetividade, leia-se, para a experiência e para a transformação (Levin; 1988: 4). Os próprios pilares onde o sujeito se funda – a experiência e a transformação – são negados, correndo ele o risco de perder o contacto consigo mesmo, isto é, de estar ciente da sua natureza de metamorfose. Nada parece mais adaptado à obra de Cristina Ataíde do que esta ideia de metamorfose, não das peças em si, mas do que elas captam: as forças vitais, a transformação do sujeito no contacto com o exterior.
A frase em vinil, inscrita no chão ou instalada no espaço do museu cada vez que é mostrada pela artista, repetindo a palavra «ser» como um mantra, aponta justamente para esse processo de transformação em relação com o meio circundante, convocando todo o ser (na sua condição desejante e futura) e não apenas a sua índole racional e estabilizada. É o que defende também Paul Rodaway, que questiona o modelo de conhecimento veiculado pela visão. Em Sensuous Geographies - Body, sense and place, de 1994, o autor faz sobressair a importância da vertente psicossomática na cognição, defendendo a conjugação dos sentidos na constituição de cada subjetividade, no seu enquadramento histórico, geográfico e social. Para ele, a cognição e a consciência psicossomáticas derivam em grande parte: “da recetividade táctil do corpo (…). Muitas emoções podem ser associadas ao tato – desde o carinho e o amor à repugnância e ao ódio. Deste modo, [o sentido do tato] compreende uma dimensão significativa da experiência humana, quer na relação de pessoa para pessoa, quer na relação da pessoa com o meio. Podemos perder qualquer um dos outros sentidos ou até mais que um – a visão, a audição, o olfato, por exemplo –, mas perder a capacidade de sentir, ou seja, o tato, é perder o sentido de estar no mundo, e fundamentalmente, o próprio sentido do ser.” (Rodaway, 1994: 41).
No percurso para a sala seguinte, uma escultura composta por vários elementos fundidos em bronze, cascas de árvore de Angelim, acompanha e conduz a fluidez do andar.
Ao contornar a esquina, na sala seguinte, encontra-se um núcleo que junta uma peça antiga, com o título “Memórias”, composta por doze elementos em ferro (#1-12), cada um correspondendo a um “capítulo” da vida da artista e uma série de desenhos, nova, realizada propositadamente para esta exposição. A junção é inédita e dá a perceber que Cristina Ataíde retorna à forma do recetáculo, como um órgão do corpo humano, ciclicamente. Os elementos em ferro, dispostos no chão, são caixas com configuração de leque, recetáculos com grelhas, que guardam no seu interior materiais relativos a episódios da vida feminina e particular: algodão, tecido, cor de sangue e outras matérias em cru. O conjunto formado pelos doze capítulos, alude à ideia de devir da imanência, de uma subjetividade, que se vai formando com o decorrer do tempo. Esta reverte-se na representação artística sob a forma de sensações e intensidades, contendo uma parcela de erotismo, própria do corpo desejante. Também por esse motivo resguarda um núcleo resistente à linguagem verbal podendo ser pensado como um vazio ou como o “silêncio do corpo”. Este silêncio, próprio da constituição carnal do ser, corresponde àquilo a que noutras ocasiões designei por khôra. Trata-se de um vocábulo com valor sociológico e existencial – sem tradução ou definição precisas - que remete para espaço, lugar, região, recetáculo, habitação, abrigo, o que ajuda a explicar a transferência do conceito sociológico para o artístico. A noção de khôra está também relacionada com o corpo, mais precisamente com o útero enquanto local de proteção e recetáculo de nutrimento, isto é, um espaço do nascimento por excelência. Então qual o significado que se deve atribuir à palavra no contexto da obra de Cristina Ataíde?
A associação do espaço do útero com a génese da vida permite estabelecer uma analogia entre o corpo e a primeira habitação. O corpo é o recetáculo onde se gera a vida, eixo fundador do trabalho de Cristina Ataíde. Considerando que a artista pensa o seu corpo em simbiose com o meio circundante, respirando, boca-a-boca, o mesmo ar, então o meio circundante, a natureza onde a artista se insere, é ponto centrifugo da criação. Dito de outro modo, é do encontro da artista com o meio ambiente, da dissolução das forças de uma no outro, que brota a criação, e a sua obra é a materialização dessa respiração síncrona, a um tempo só.
Esta fusão parece materializada numa parede de desenhos em tons sépia e vermelhos-rosa, “Paan #1-10”, de 2020, decalcados de fólios de tabaco prensado. Curiosamente estas placas de tabaco prensado têm elas próprias a configuração de uma folha de árvore de grandes dimensões, com raiados e nervuras, sugerindo, por sua vez, a carnação de um órgão do corpo humano. Cristina Ataíde representa-as repetidas vezes, dez vezes, com diferentes intensidades cromáticas, sugerindo propositadamente a sobreposição entre a folha de árvore e o órgão do corpo humano que bombeia a vida e a respiração. A base aos desenhos, a folha de tabaco prensado, ganha espessura num par de esculturas, fundido em bronze, que a artista dispõe entre os elementos de desenho, fazendo o órgão ganhar espessura e volume.
A chave para interpretar o conjunto situa-se na parede oposta, em duas esculturas em bronze, de pequena dimensão, que surgem na parede como dois apontamentos, com o nome “Sementes Amazónicas”, de 2019. Representam frutos exóticos, cápsulas, contentores de sementes. Eles são locus de fertilidade, como o parece ser a arte para Cristina Ataíde. O seu trabalho está pulverizado de representações do útero, do recetáculo, de formas que cingem e não de formas que invadem. Nesse sentido, a sua obra é profundamente feminista, envolvente, fundadora, telúrica – algo que não pode deixar de se associar à sua cor de eleição, quente, carnal e fecunda.
O desejo de devir, de germinação, está também apontado no fecho da exposição, a última sala, com três desenhos vermelhos, em rolos de papel pendurados por um extremo e desenrolados verticalmente no espaço de exposição. Ao lado destes, uma peça em potência, constituída por uma caixa de papeis vermelhos, reclama um exercício do visitante, só se completando com a sua participação. O visitante é convidado a inscrever um desejo ou segredo privado num pequeno papel da caixa, que posteriormente deverá inserir entre as pedras que compõe o muro do museu, “manchando-o” de pequenos pedaços de cor. O gesto que se pede ao visitante – enfiar o seu papel entre as fissuras das pedras do muro – é sugerido por uma pequena escultura em madeira, composta por duas partes, duas portas, dois lábios, que a artista instala perto do muro. Como uma boca, uma fissura entreaberta, a peça corporiza ela própria a possibilidade de entrada e de contenção num corpo, num espaço, num recetáculo.
A transformação e conjunção dos elementos (terra, água, fogo e ar) fica patente na sala comprida, corredor do museu, onde a artista dispõe discos em pedra, de diâmetro variável, entre 60 cm e 1 metro, recompondo uma cosmogonia das suas matérias de eleição. Sobre discos de pedra branca, em grupos sequenciais, são sobrepostos: fósseis, calhaus sedimentados pelo mar, sementes de aveia e/ou cevada e água. Resta dizer que o primeiro grupo de discos, com aberturas no centro, provém da série «Observadores do Céu» e é alusivo ao ar: o ar e o vento, dos quais tantas vezes a artista se serve para desenhar.
A obra de Cristina Ataíde é profundamente telúrica e resulta cada vez mais da sua necessidade de fusão com o meio e com as forças naturais. Nesse sentido, nada no seu trabalho assume um caracter extrativo ou de usurpação. Ao contrário, há uma necessidade extrema de conhecimento e cuidado na utilização das matérias – o que só revela a intenção de fusão com o lugar, uma respiração boca a boca, com a terra mãe e as suas forças vitais.
A produção da artista ensina sobre tudo isso. O seu posicionamento de mulher, escultora, mãe, mas também a fluidez que assume, põem em jogo a existência como contínuo devir. Esta ideia é debatida em Gilles Deleuze, cartógrafo da força em vez da forma, e se aqui se faz referência ao pensamento deste autor deve-se ao facto de a obra de Cristina Ataíde juntar força e forma num só.
Deleuze concebe o movimento como uma força contínua que desestabiliza e faz repensar o espaço, o lugar, o edifício e a tectónica. Aqui reside a preocupação do autor em se afirmar pela filosofia do paradoxo, do duplo, da tensão mantida no oximoro (duas forças contrárias que não se anulam), da copresença entre sentido e não-sentido (que não entram numa relação de exclusão do falso pelo verdadeiro). Na sua obra paradigmática, Différence et Répétition, Deleuze pensa a ideia de diferença (resultante do movimento e da repetição) como uma força de afirmação, desejo positivo de declaração da vida e mudança que previne o pensamento de se atar ao mesmo, ao uniforme e ao idêntico (Deleuze, 2005). O mesmo podia dizer-se da obra de Cristina Ataíde, que procura libertar as formas de representação daquilo que as captura, isto é, a doxa, as imagens e normas já estabelecidas. Para a artista, tal como para aquele filósofo, as fronteiras entre interior e exterior, tais como as que dizem respeito ao “eu” e ao outro, ao sujeito e ao objeto, não devem ser pensadas como limites a transgredir, mas como bordas a atravessar. As fronteiras implicam o processo de passagem, e não de destruição, sendo o próprio movimento que volta a redefinir as fronteiras. Estas, assim entendidas, são mais porosas e menos rígidas do que comummente é percebido e nisso a obra desta artista não deixa dúvidas. Ela implica um olhar direcionado ao espaço envolvente, com o fito de nele penetrar e se deixar fundir no meio ambiente.
Não queria, porém, deixar de anotar que a artista, partindo do campo do escultórico e nele inscrevendo maioritariamente a sua obra, traz à exposição no Museu de Escultura Contemporânea de Santo Tirso um conjunto de obras e documentos em vídeo, um de título “Respiração”, que captam a fluidez ou mesmo fusão entre rio e atmosfera, corpo e matérias, processos e formalizações, geografias e temporalidades, mostrando a versatilidade nos vários meios artísticos, fazendo-os respirar sincronamente, a um só tempo.